Todos temos virtudes, mas também defeitos. Alguns nos acompanham toda a vida; parece que estão encrustados n’alma. Outros, menos mal, são temporários.
Por causa de uma situação pessoal, vivenciada entre os anos de 2001/2010, deixei aflorar em mim o defeito (felizmente temporário) da indolência: fiquei preguiçoso, desinteressado, desorganizado, indisciplinado; vivi um tempo sem cuidar de mim.. Resultado: engordei, bebi mais do que devia; passei a viver além das minhas forças. Me endividei e adoeci, física e emocionalmente.
Precisava sair daquele lugar de sofrimento..
Mas faltava me assumir de novo. Ser aquele obstinado que conseguiu tudo com força de vontade. Senti que precisava de um objetivo. Um caminho que psicológicamente me fizesse ser novamente Eu.
Com ajuda de psicoterapia, após meses de sessões semanais, consegui me mover.
Desde 2009 eu já praticava corrida e ciclismo, por saúde e lazer. Não tinha intuito de competição. Resolvi então fazer algo realmente representativo de uma grande força de vontade e dedicação. No início de 2011 decidi fazer o Ironman em 2012. Neste ano eu completaria 50 anos.
Contei com a ajuda da Márcia Ferreira, minha treinadora de corrida e bike. A mentora das minhas planilhas e que tornou-se boa amiga.
Faltava a natação…
Na água sou um prego. Não aprendi a nadar cedo e ainda por cima, não gosto de nadar em piscina.
Graças ao meu amigo Feliciano Azevedo, essa grande figura que conheci numa mesa de operação, quando uma ptotusão discal precisou ser tratada. Eu não sabia da importância que médico teria na minha vida. Aquela expressão tranquila, os cabelos grisalhos da experiência… O procedimento foi um sucesso.
Nas consultas pós posteriores descobri que o doutor era um triatleta. Ele não me deixou desistir do esporte e me incentivou a continuar até meu corpo, realmente não deixar mais.
Através dele conheci outra pessoa maravilhosa, que mudaria minha vida: Luiz Lima.
Esse grande campeão das piscinas, atleta olímpico, tornou-se o Rei do Mar. E pra minha sorte, dá aulas a 300 m de onde moro!
Eu já tinha visto o excelente trabalho social que ele desenvolve no posto 6 em Copacabana, através da Prefeitura.
Foi o Feliciano quem me levou para um grupo de nadodores que o Luiz treina às segundas e quartas em dois horários e aos sábados numa turma única.
Procurei o Luiz e lhe falei do meu plano sobre o Iron Man.
Lhe pedi uma coisa: fazer os 3.800m no mar em 1 hora e 30 minutos, saindo em condições de pedalar e correr pelo resto do dia. Ele me pediu para nada uns metros, observou, conversou comigo e disse: você vai conseguir.
Ali conheci os colegas que se tornariam meus amigos.
Inicialmente o grupo das 8h e depois, em razão das turmas aos sábados, também o pessoal das 06:45, que possui muitas feras da natação.
No início o grupo era pequeno, tipo 10 pessoas, mas foi crescendo, com a qualidade das aulas, a propaganda boca a boca e o clima maravilhoso que o Luiz proporciona.
Com o tempo o grupo cresceu muito em todos os sentidos. Pela garra, pela vontade e especialmente, pelo enfrentamento dos desafios vencidos individualmente em cada tavessia. O grupo tornou- se unido e com um nome à sua altura: GLADIADORES.
Treinei um ano e meio até o Iron.
Após várias contusões, alguns contratempos no trabalho, e em 27 de maio fui para o sonho.
E sabia que meu objetivo era chegar. Especialmente com os dois joelhos avisando “que algo estava demais” e a panturrilha esquerda doendo até ao andar, não fixei ambição de fazer um tempo predeterminado.
Eu sabia que a maratona seria sacrificante pois os músculos e ligamentos não estavam em boas condições.
A viagem
Casado desde 2011 com Cristiane, minha companheira inseparável e maior incentivadora que tenho, não me senti sozinho. Na bagagem levei a torcida de todos os amigos que pela internet, no celular, me incentivavam e davam força e coragem.
Resolvi viajar dia 25 sexta, pela manhã.
O vôo atrasou. O Galeão… bem o Galeão vai receber os atletas da Olimpíada no Brasil, mas continua o mesmo: Uma vergonha!
Primeiro o vôo já atrasou, depois nos mandaram para um ônibus, pois o avião estava no pátio, longe da esteira.
Encontrei dois triatletas da equipe Walter Tuche e um da Márica Ferreira. Todos ansiosos para chegar. Um aviso pede para descermos do ônibus, porque o avião estava… Sei lá. Descemos pra ficar em pé numa sala… Voltamos pro ônibus, já presentindo que o Iron começaria ali. Aquela era a primeira prova.
Embarcamos e a viagem foi -ou seria-, rápida. Pouco mais de uma hora e chegamos em Florianópolis!
Não aterrissamos. Chovia muito e não havia teto. Fomos para Porto Alegre sem saber o que aconteceria. Nosso presentimento estava certo: aquela já era a primeira etapa do Ironman!
Passada uma hora e pouco fomos avisados que decolaríamos para Floripa, mas que ainda chuvia e poderíamos voltar. A ansiedade só aumentava.
Veio o pior: chegando em Florianópolis chovia muito, mas o Comandante resolver aterrisar mesmo assim.
Já viajei muito, mas pela primeira vez senti muito medo; olhei pela janela e vi a chuva forte com as asas do avião balançando… Enfim chegamos.
O dia anterior
No sábado acordei e fui a Expo buscar a bike no stand do Barcellos.
Houve um problema no freio e tive que voltar pro hotel andando. São 1.600 metros, mas pareceram 16km. A panturrilha começou a doer tanto que nem dava pra andar direito. Contei pra Cris, mas não disse tudo, afinal, por ela eu faria a prova, mesmo sem perna.
Fiz uma sessão de um tipo de quiropraxia, que não ajudou muito, mas me acalmou.
À tarde levei a bike para a transição e a ansiedade aumentava. A dor na lanturrilha também. Encontrei o Araújo, colega de Equipe que me deu dicas ótimas: fugir da agitação e stress, chegando cedo e voltando para o hotel.
Finalmente chegou o dia.
Seguindo a dica do amigo, acordei 4h, tomei um cafezinho e fui direto pra marcação dos números no corpo.
Verifiquei os detalhes finais, as bolsas e voltei pro Hotel. Encontrei a Cris e fomos pro café reforçado. Peguei a roupa da natação e fui para prova.
O sol não tinha raiado e a multidão de atletas chegava. Encontrei ovários colegas de equipe: Maurício, Juliana e alguns que não lembro o nome…
A água estava meio fria, mas nada demais pra um Gladiador acostumado.
Fomos pro final do turma, na parte detrás da área, pra não sair no “cardume”.
Finalmente começou o Iron.
O tiro, a correria para água. Naquelo momento tudo se acalmou. Uma traquilidade enorme se apossou de mim.
Dei braçadas lembrando das instruções do Luiz, procurando economizar pernas e ir “no braço”.
De repente respirei pra direita e vi o sol nascer. Tudo muito lindo… até a primeira bóia.
A segunda bóia não dava pra ser vista e olhando em volta, não consegui descobrir o rumo. Fiz um arco, nadei mais que devia, mas cheguei na praia.
Corri procurando a Cris e não achei. Voltei pra outra parte da prova, quando vi os atletas já chegando… Uma nota triste. Alguns atletas (desonestos) se misturaram aos verdadeiros atletas, aproveitando a fragilidade na fiscalização e diminuiram uns mil metros no percurso… Problema deles.
Fui pra terceira boia e novamente fiz um arco entre a terceira e a quarta. Lembrei de ter tranquilidade na chegada e respirando calmamente cheguei.
Grande surpesa: Luiz tinha razão! Consegui fazer em 1 hora e 29 minutos! Um minuto a menos que o programado.
Cheguei inteiríssimo, mas despreparado para transição.
Devo ter levado uns 15 minutos. A transição pode ser feita rapidamente, porque há um grupo de apoio da organização que ajuda a retirar a roupa de borracha. A gente já chega com a roupa pela cintura, deita, e um rapaz ou moças, rapidamente puxam a roupa. Aí foi uma correria, por com corredor de gente apludindo e gritando até a área de transição.
Nesta hora vi a Cris sorrindo.
Eu estava muito bem, embora a panturrilha já desse o “ar de sua graça”. Manquei um pouco e entrei na tenda. Centenas de bolsas! A minha estava no corredor “L”, número 2109.
Peguei tudo, sentei com calma e comecei o ritual: creme na virilha, roupa completa de “Power Ranger”, meias, sapatilha, comida, óculos, enfim um arsenal pra encarar 180 km de bike! Oficialmente foram 17minutos e 28 segundos de transição: uma eternidade…
O Ciclismo
Lembrei do Kadú, nosso colega gladiador, que me disse pra comer e beber o tempo todo.
O ciclismo é emocionante.
Ao mesmo tempo em que procurava manter a media de velocidade planejada, de olho no Garmin, não tinha como deixar de curtir a paisagem, os atletas, as curiosidades.
Ao mesmo tempo me preocupando com os pneus que poderiam furar, e as quedas dos outros atletas.
Será que meu pneu iria furar? Eu morria desse medo, porque nem sabia como trocar um pneu tubular que eu estava usando. Mas não furou, graças a Deus.
Foram 45 km de muita euforia.
Até então todos iam na mesma direção. De repente os atletas da frente -os feras-, já estavam voltando. São muito rápidos!
A partir daí eu perdi a noção se estava no terço da frente, do meio ou no final.
A cada 5 ou 10 km uma pequena disputa se realizava. Vários atletas passavam por mim, mas não abriam… Ou eu pegava vácuo, que é proibido, ou diminuia; ou acelerava um pouco e ultrapassava, o que me obrigava a um esforço extra. Isso ocorreu dezenas de vezes. Até que o Edson (vi o nome na camisa) passou por mim pela décima vez e dizer: – que ioiô hein?respondi aue sim. Conversamos um pouco. Ele é de São Paulo e também fazia pela primeira vez o Iron. Até que no 120o km ele “quebrou”.
O trajeto tem subidas e descidas (algumas íngremes), que foram o início da minha agonia.
Como eu pretendia “economizar” na bike (na qual eu vinha bem nos treinos) para sobrar energia e pernas para maratona, pensava em fazer uma média de velocidade mais baixa do que nos treinos. Não comsegui…
Em cada subida eu me empolgava e passava quatro, cinco, dez atletas. Isso me custaria caro!
No Km 60 parei porque não aguentava mais de tanta água, sem o respectivo suor… Aproveitei um ponto de parada da organização e aliviei. Neste ponto perdi contato com o amigo de equipe Maurício Santos, que revezava comigo sem vácuo.
Num dado momento vi uma cena triste: um ciclista sentado, com a bike desmontada ao lado, de cabeça entre as pernas, chorando. Pensei que podia ser comigo…
Noutro momento vi um ciclista carregando um pequeno deficiente nas costas, como se fosse um filho. Nossa, que garra, que emocionante. Isso me deu mais força.
O ida estava lindo, mas solzinho já estava chato.
Completei a primeira volta de 90 km ainda empolgado, mas já um pouco ofegante. Mesmo assim estva me sentindo muito bem. Novamente vi a Cris dando força, ao lado Márcia.
A segunda volta foi mais difícil. As subidas pareciam intermináveis.
Eu me aproximava do fim. Dava pra ver, nos 3 km finais, a fila enorme de gente que já estava na maratona. Chamou-me a atenção haver muitos andando. Eu não sabia que eram tantos.
Por volta das 14:45/15h terminei. Tempo oficial: 6h21min24seg. Bem mais forte do que o planejado! Ai meu Deus!!
A Maratona e o final
Mas sai correndo e vamo que vamo!!
Logo na saída a Cris gritou e deu força. Procurei manter um ritmo fraco, porque realmente não queria forçar a perna. Mas ela começou a doer e me deu medo.
No entanto a dor não durou mais que 3 km. Me senti relativamente bem e continuei sem forçar. Eu so pensava em chegar.
Lembro de cada colega gladiador me dizendo “você corre bem, vai arrasar na corrida” etc. Tentei apertar. Passei a meia maratona com 2 horas e 15 mais ou menos.
Foi aí que meu martírio começou. Afinal a prova não tem esse nome à toa.
A panturrilha não doeu mais, porém, em compensação, AS DUAS PERNAS começaram a doer muito na parte da frente da coxa. Muitas caibras.
Se eu pensasse em aumentar o ritmo elas doiam demais. Nunca tinha sentido aquilo. Era como se fossem arrebentar. Completei a primeira volta (com 21 km) pedindo uma Moto Serra pra Cris, porque “queria cortar as pernas fora”. Tenho até um vídeo disso. Rs.
Faltavam duas voltas de 10km.
Eu ganhei a pulseira azul (relativa a primeira volta de dez) chorando, porque doia muito e alguns disseram: – olha, ele tá emocionado!..
Eu tinha a consciência que meu pulmão faria mais 20, 30 km se necessário. Pouco antes desse momento passei pelo Luiz Lima e pelo Feliciano, que deram a maior força. Gritaram, correram um pouco do meu lado. Isso dava coragem.
Nem consegui sorrir… Passei pela Márcia Ferreira e ouvi: – “vamos terminar, vamos lá”.
Não era uma questão de cansaço, era raça em suportar a dor.
Naquele momento decidi terminar a prova. Se fosse preciso eu iria andar, parar e alongar, mas iria até o fim. Pensei nas frases que nos falamos nos treinos, em cada amigo que contava em me parabenizar e iria terminar.
Completei mais uma volta e peguei a pulseira amarela. Agora só faltavam 10km. Novamente a Cris, a Márcia, o Luiz e o Feliciano davam força.
Eu pude entender porquentantos caminhavam…
Nesta última volta encontrei um sargento guarda vidas de Curitiba que corria e andava ao meu lado. Reclamei das pernas e ele dos pés: havia trocado ontênis nas bolsas e corria até ali com o tênis sem qualquer amortecimento. Fiquei com pena e troquei de tênis com ele. Afinal o que me doía eram as coxas.
Quando faltavam 4 km percebi que tinha 13 horas e 20 minutos de prova. Decidi acabar antes de 14 horas. Pra isso eu precisava fazer uma média de 7/8 min/km. Só que andando eu ia a 9/19 min/km…
Voltei a correr. Nunca sofri tanto. Nunca senti tanta dor.
Já era noite, naquele trecho não tem torcida, só atletas solitários com suas dores.
Cris me aguardava na chegada. Márcia me deu a úiltima força faltando 1600m, dizendo que tinha marcado entrevista com uma repórter…
Faltando 1 km o Luiz me encontrou a correu ao meu lado até o fim. Ficou ali dando força moral. Me lembro dele dizer: – esquece a perna. Também não me criticou quando andei um pouquinho. Faltavam agora 200 metros. O Feliciano juntou-se a nós. Nunca vou esquecer isso. A amizade, a solidariedade, o respeito e o carinho.
Na chegada a Cris segurou a minha mão e o Luiz disse: – p… momento é seu, VAI!
Cruzei a linha com 13h58min!!
Eu consegui!
Agradeço a Cris, ao Luiz e ao Feliciano. Aos amigos da equipe Márcia Ferreira (especialmente ela) e ainda aos Gladiadores pelo torcida e carinho muito especial. Senti a vibração de todos. MUITO OBRIGADO.
Que venham novos desafios.
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